“Medida por Medida” integra o grupo das chamadas “comédias sombrias” de Shakespeare, ao lado de “Bem Está o que Bem Acaba”. Essas obras compartilham traços estilísticos e textuais, como um humor tenso, a iminência de tragédias, temas de morte, desamor e situações cômicas que oscilam entre o sério e o absurdo. Por isso, mesmo classificadas como comédias, elas fogem do padrão tradicional do gênero.
Essas peças surgem em uma fase em que Shakespeare se dedicava especialmente às tragédias — exemplificadas por “Hamlet” e “Otelo” — o que influencia seu tom e estrutura, diferenciando-as de outras comédias mais leves e descontraídas, como “A Comédia dos Erros”, “As Alegres Comadres de Windsor” ou “Sonho de uma Noite de Verão”.
O tema central de “Medida por Medida” gira em torno da aplicação rígida e impiedosa das leis do Estado, mesmo quando estas se mostram absurdas ou entram em conflito com questões morais e o cotidiano dos cidadãos. A trama se passa em Viena, onde uma lei severa busca punir a libertinagem sexual da população.
O Duque da cidade, ao perceber a imoralidade que se alastra, não sabe como agir sem se tornar um tirano aos olhos do povo. Decidindo se afastar, ele delega o poder a Ângelo, conhecido por sua reputação irrepreensível e moral rígida. No comando, Ângelo endurece a aplicação das leis, condenando Cláudio, um jovem nobre, à morte por engravidar uma mulher fora do casamento. Grande parte da peça se dedica a discutir a injustiça dessa sentença, especialmente considerando que Ângelo esconde segredos muito mais graves do que o delito de Cláudio, o que gera empatia pela vítima e crítica à hipocrisia do poder.
Não é surpreendente que a obra tenha sido mal recebida na corte de Jaime I, quando apresentada pela primeira vez em 1604. A peça critica duramente leis arbitrárias e a corrupção entre os governantes, representados pelo Duque, que prefere se esconder e transferir responsabilidades, evidenciando sua falta de firmeza política e a fragilidade do sistema de justiça.
Apesar do tema pesado, a narrativa entrelaça também histórias de amor e intrigas, o que faz a qualidade da peça perder um pouco de força a partir do terceiro ato. O Duque, disfarçado de frade, observa os acontecimentos e decide agir em favor dos injustiçados. O desfecho traz resolução para a maioria dos conflitos — com exceção do personagem Lúcio — mas não transmite uma felicidade plena. Ângelo, por exemplo, é forçado a se casar com uma antiga noiva, situação que remete a outra obra de Shakespeare, “Bem Está o que Bem Acaba”.
A versão cinematográfica dirigida por Desmond Davis destaca os pontos dramáticos da peça, contando com um elenco competente e uma ambientação cuidadosa, que ajuda a evitar a sensação de “teatro filmado”. As cenas internas apresentam uma cenografia rica em cores, objetos e posicionamento dos atores, enquanto as externas optam por planos mais fechados, o que traz verossimilhança ao ambiente sem exageros de panorâmicas.
O tom da adaptação é marcado por uma atmosfera de tragédia iminente, reforçando a inadequação da classificação de “comédia” para a obra. O humor é escasso e muito sutil, concentrado principalmente no personagem Lúcio, cujo humor negro combina perfeitamente com sua personalidade controversa.
Na reta final, quando o Duque retorna a Viena e conduz os julgamentos, Kenneth Colley se destaca mais como frade do que como Duque, embora transmita uma autoridade convincente, contrastando com a interpretação vigorosa de Tim Pigott-Smith no papel de Ângelo. Entre as atrizes, Kate Nelligan se sobressai como Isabella, demonstrando uma simplicidade que revela uma personagem sofrida, prestes a perder o irmão, mas resignada ao destino que acredita ter sido traçado por Deus. Curiosamente, a fé de Isabella sofre uma transformação ao longo da peça, culminando em sua entrega ao amor do Duque.
“Medida por Medida” é uma reflexão profunda sobre o poder e as consequências de seu mau uso por autoridades corruptas e arbitrárias, como uma crítica cínica que remete à metáfora da “Espada de Dâmocles”. A adaptação de Desmond Davis capta com competência os elementos essenciais do texto de Shakespeare, entregando um resultado sólido, ainda que mantenha os aspectos polêmicos e as fragilidades da trama, sobretudo as relações amorosas inseridas em um pano de fundo político tão bem construído.
Medida Por Medida (Measure for Measure) – Reino Unido, 1979
Direção: Desmond Davis
Roteiro: William Shakespeare
Elenco: Kenneth Colley, Kate Nelligan, Tim Pigott-Smith, Christopher Strauli, John McEnery, Jacqueline Pearce, Frank Middlemass, Alun Armstrong, Adrienne Corri
Duração: 145 minutos
Perguntas Frequentes:
1. Quais são as características que fazem de “Medida por Medida” uma comédia sombria de Shakespeare?
R: “Medida por Medida” integra o grupo das “comédias sombrias” de Shakespeare, marcadas por um humor tenso e sutil, a iminência de tragédias, temas como morte e desamor, e situações que oscilam entre o sério e o absurdo. Diferentemente das comédias tradicionais, essas obras apresentam um tom mais pesado e reflexivo, influenciado pelo contexto em que Shakespeare se dedicava às tragédias.
2. Qual é o tema central da peça “Medida por Medida” e como ele é abordado na trama?
R: O tema central de “Medida por Medida” é a aplicação rígida e impiedosa das leis do Estado, mesmo quando entram em conflito com a moral e a realidade dos cidadãos. A história se passa em Viena, onde o Duque delega o poder a Ângelo, que aplica severamente as leis contra a libertinagem sexual, condenando injustamente Cláudio à morte. A peça critica a hipocrisia do poder e a corrupção, mostrando as consequências do uso arbitrário da autoridade.
3. Como a adaptação cinematográfica dirigida por Desmond Davis retrata a peça e quais são os destaques do elenco?
R: A adaptação de Desmond Davis destaca os elementos dramáticos da peça, criando uma atmosfera de tragédia iminente e evitando a sensação de “teatro filmado” por meio de cenografia rica e planos fechados nas cenas externas. Kenneth Colley interpreta o Duque/frade com autoridade convincente, Tim Pigott-Smith se destaca como o rigoroso Ângelo, e Kate Nelligan brilha como Isabella, demonstrando a complexidade emocional da personagem. O humor é sutil e concentrado no personagem Lúcio.
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