Se você ainda não teve a oportunidade de ler Ricardo III, de William Shakespeare, vale muito a pena dedicar um tempo a essa obra, que é possivelmente o maior drama histórico do dramaturgo. O personagem principal é uma das figuras mais complexas e fascinantes dos vilões do teatro mundial. Agora, se a leitura não é o seu forte (uma pena), antes de assistir ao filme que aqui será analisado, recomendo fortemente que veja a versão de Laurence Olivier, considerada a melhor e mais significativa adaptação dessa peça, além de uma das mais notáveis adaptações clássicas das obras de Shakespeare.
Por outro lado, se você já assistiu ao filme de Olivier e está à procura de uma abordagem diferente, mas de qualidade comparável — sim, afirmo com convicção —, então vale a pena conferir Ricardo III, dirigido por Richard Loncraine em 1995, que traz um elenco de peso liderado por Ian McKellen, antes de sua consagração como Magneto e Gandalf.
Essa adaptação é baseada em Ricardo III, mas não segue exatamente o texto original; ela é inspirada numa montagem teatral dirigida por Richard Eyre para o Royal National Theatre de Londres, que também tinha McKellen no papel principal. A ação é transposta para uma Inglaterra distópica, com uma atmosfera fascista dos anos 1930. O texto shakespeariano está presente em toda a sua grandiosidade, com trechos emblemáticos como “Este é o inverno de nosso descontentamento”, que McKellen recita em diferentes momentos — desde um palanque até um banheiro — culminando com o famoso “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!”, que ganha um sentido novo mesmo com a presença de carros, trens e aviões na trama.
Ian McKellen, que também coescreveu o roteiro junto com o diretor, realiza um trabalho primoroso ao condensar a peça original, fundindo personagens e eliminando cenas para garantir um ritmo intenso até o clímax. Assim como na versão de Olivier, feita 40 anos antes, Ricardo se dirige diretamente à câmera, mas mantém uma sutil fronteira entre o teatro e o cinema, sem romper completamente a quarta parede.
O que realmente impressiona nesta versão é a direção de arte, o design de produção e os figurinos. Com um orçamento relativamente modesto de seis milhões de libras, a produção surpreende pela riqueza nos detalhes das roupas e pela utilização inteligente de locações, potencializando o impacto visual. Um momento marcante é quando Ricardo, diante de uma plateia que remete às imagens dos documentários nazistas de Leni Riefenstahl, se revela como o Duque de Gloucester. Além disso, o uso de efeitos digitais para alterar cenários icônicos de Londres, especialmente para cenas externas impactantes — como a conversa de Ricardo com seu irmão, o rei Eduardo IV (interpretado por John Wood), sobre o assassinato do Duque de Clarence, George (Nighel Hawthorne) — é um recurso notável para a época e com orçamento limitado.
Para quem não está familiarizado com a trama, recomendo a leitura da crítica sobre Ricardo III publicada em 1955 por meu coeditor Luiz Santiago, que oferece um contexto histórico e detalhes da narrativa. Resumidamente, Ricardo é um homem ambicioso e de aparência assustadora — é corcunda, manca e tem um braço paralisado — que faz de tudo para conquistar o trono da Inglaterra. Suas traições são tantas e tão evidentes que até seus aliados mais fiéis acabam por abandoná-lo, o que o conduz à sua queda.
Diferentemente da versão de Olivier, que omite as cenas de assassinatos mencionadas na peça, o filme de Loncraine as mostra com detalhes, sem que pareçam gratuitas. Isso adiciona uma dimensão sombria que combina com a aparência aterradora de McKellen e com a narrativa, que utiliza constantemente a iconografia nazista para sublinhar o paralelo com a ascensão de Hitler. Desde os uniformes e bandeiras até a postura agressiva do Duque de Gloucester, o filme cria uma alegoria clara desse período histórico.
McKellen entrega uma interpretação magistral de Ricardo III. Ao contrário da versão de Olivier, cujo rosto mais angelical disfarça as intenções do personagem, McKellen, com seu cabelo penteado para trás e um bigode reminiscentes do estilo hitleriano, não deixa dúvidas sobre sua natureza. Destaca-se especialmente a cena em que ele se aproxima de Lady Anne (vivida por Kristin Scott Thomas), que chora pelo marido morto por Ricardo; mesmo confessando o crime, ele tenta se passar por vítima arrependida, enganando facilmente uma personagem tão desavisada quanto Lady Anne.
Annette Bening também brilha como a Rainha Elizabeth, esposa do rei Eduardo IV, que passa de uma figura altiva e feliz a alguém destruída pela ambição de Ricardo. O diálogo final entre ela e o usurpador, dentro de um trem militar, é particularmente comovente.
O elenco conta ainda com nomes como Jim Broadbent, Robert Downey Jr., Maggie Smith, Jim Carter, Edward Hardwicke, Roger Hammond e Dominic West, todos comprometidos com o drama e capazes de impressionar o público com suas atuações.
No entanto, essa adaptação não está isenta de controvérsias. A cena final mostra Ricardo fugindo, seguido pelo Conde de Richmond (Dominic West). Sem saída, Ricardo se lança de uma estrutura, e a câmera registra dois cortes: no primeiro, foca no rosto do Conde, que, assim como Ricardo, olha para a câmera e sorri; no segundo, mostra Ricardo caindo e rindo loucamente em direção a uma bola de fogo.
O que há de problemático nisso? Essas cenas não são aleatórias. McKellen brinca com a estrutura shakespeariana, estabelecendo uma conexão direta entre Ricardo e o diabo (representado pelo riso e a queda no fogo), além de sugerir que o Conde de Richmond é uma espécie de sucessor, alguém que seguirá seus passos, simbolizado pelo sorriso dirigido ao público. Essa distorção no final da peça é intrigante, ainda que pouco convencional, especialmente pela forma como é apresentada.
Em suma, Ricardo III, de Loncraine e McKellen, é uma adaptação fiel e ao mesmo tempo inovadora da obra de Shakespeare, que merece ser vista por todos, especialmente após o clássico de Olivier.
Ficha técnica do filme Ricardo III (Richard III, EUA/Reino Unido, 1995):
Direção: Richard Loncraine
Roteiro: Ian McKellen, Richard Loncraine, baseado na peça de William Shakespeare
Elenco: Ian McKellen, Annette Bening, Jim Broadbent, Robert Downey Jr., Nigel Hawthorne, Kristin Scott Thomas, John Wood, Maggie Smith, Jim Carter, Edward Hardwicke, Adrian Dunbar, Tres Hanley, Dominic West
Duração: 104 minutos
Perguntas Frequentes:
1. Qual é a principal diferença entre a adaptação de “Ricardo III” dirigida por Richard Loncraine em 1995 e a versão clássica de Laurence Olivier?
R: A versão de Loncraine transpõe a ação para uma Inglaterra distópica com atmosfera fascista dos anos 1930, utiliza a iconografia nazista para reforçar paralelos históricos e apresenta as cenas de assassinatos de forma explícita, além de condensar e adaptar o texto original para um ritmo mais intenso. Já a versão de Olivier mantém mais fidelidade ao texto clássico e omite algumas cenas de violência direta.
2. Como Ian McKellen contribui para a adaptação de 1995 de “Ricardo III”?
R: Ian McKellen atua como protagonista, coescreveu o roteiro e traz uma interpretação marcante do personagem, com uma aparência e postura que evocam figuras históricas fascistas. Sua atuação é sombria e intensa, destacando a natureza manipuladora e aterradora de Ricardo III.
3. Por que a cena final do filme “Ricardo III” de 1995 é considerada controversa?
R: A cena final mostra Ricardo fugindo e se lançando em uma queda seguida de risada junto a uma bola de fogo, sugerindo uma ligação com o diabo, enquanto o Conde de Richmond sorri para a câmera, indicando que ele pode ser um sucessor no ciclo de ambição e poder. Essa interpretação é uma distorção da estrutura original da peça e apresenta um final pouco convencional.
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