Se você costuma rir de quem, como eu, se perde entre bancas de jornais e lojas especializadas em quadrinhos em busca das famosas “revistinhas” para ler, é porque provavelmente desconhece o verdadeiro poder da arte sequencial. Talvez você veja os quadrinhos como algo inferior, destinado a quem não lê livros ou só gosta de super-heróis. Se for esse o caso, além de estar cometendo um preconceito, está perdendo uma experiência única…
Um ótimo exemplo é The Underwater Welder (ainda não lançado no Brasil, mas que poderia ser traduzido como “O Soldador Submarino”). Essa graphic novel de 216 páginas, em preto e branco, acompanha a história de Jack, um mergulhador que trabalha como soldador em uma plataforma de petróleo na costa da Nova Escócia, Canadá. Enquanto sua esposa está prestes a dar à luz, ela não entende por que Jack insiste em continuar trabalhando, mesmo nos últimos dias da gestação. Jack, por sua vez, não sabe explicar essa necessidade quase compulsiva de se manter ocupado, como se fosse uma forma de punição ligada a algo obscuro em sua mente. Durante um mergulho, ele tem uma visão e, embora quase perca a vida, isso só intensifica sua busca pessoal relacionada a seu pai falecido.
A profundidade das relações entre os personagens é tão rica quanto a encontrada na melhor literatura. Jack carrega o peso de um passado traumático que o impede de vislumbrar seu futuro. Sua esposa vive em desespero por não compreender as motivações do marido. Já a mãe de Jack não entende essa fixação do filho pelo pai, lembrando claramente que ele não era um homem exemplar, como fica evidente ao longo da trama.
Damon Lindelof, conhecido por ser o showrunner da série Lost, assina o prefácio da obra e a descreve como “o episódio mais espetacular de Além da Imaginação já produzido”. E, de certa forma, ele não está exagerando. A série original Além da Imaginação (The Twilight Zone), criada por Rod Serling, é famosa por suas histórias fantásticas que exploram não só tramas intrigantes, mas também questões psicológicas profundas. The Underwater Welder segue esse caminho, entregando um roteiro que rivaliza com dramas intensos, adicionando um componente psicológico poderoso e envolvente.
As reflexões que Jeff Lemire, autor da obra e também conhecido por Sweet Tooth, propõe aos leitores são inquietantes. Não pela originalidade, mas pela forma como ecoam em nosso inconsciente. Quem somos realmente? Reflexos de nossos antepassados, indivíduos completamente distintos ou uma mistura dos dois? Até que ponto somos responsáveis por nossas escolhas e como essa responsabilidade nos afeta?
As respostas estão todas presentes na narrativa de Lemire. Algumas são claras, outras mais sutis. Mas não espere apenas palavras: é justamente aí que uma graphic novel como essa se destaca. As imagens são singulares e evocam sentimentos profundos. O traço do artista, que também é o ilustrador da obra, parece propositalmente incompleto, sem a finalização polida típica de outras HQs. Isso torna evidentes emoções como solidão, desespero, amor, repulsa, ódio e determinação, tudo sem depender de balões de diálogo ou explicações fáceis para o leitor.
Há momentos que se destacam pela criatividade visual, como o segundo mergulho clandestino de Jack. Vemos uma série de quadros, alguns ocupando páginas inteiras, com imagens quase idênticas, mas com pequenas variações que nos puxam para dentro da narrativa. É quase impossível não ler tudo de uma vez e, depois, voltar para apreciar com calma o que Lemire construiu.
Outro exemplo impressionante do domínio da linguagem dos quadrinhos pelo autor ocorre quando Jack está sozinho em sua cidade. Ele vagueia por locais familiares, mas para reforçar sua solidão, Lemire muda a perspectiva para uma visão aérea da cidade inteira, sem dar destaque ao protagonista. A sensação é semelhante a um olhar pelo Google Earth. Se você parar nessa página e tentar compreender a geografia, a posição de Jack e as sombras, perceberá o trabalho minucioso por trás, tudo para reforçar um sentimento já claro antes. Esse é Lemire talvez em seu melhor momento, e se isso já é incrível, é empolgante imaginar até onde esse jovem autor e desenhista pode chegar no competitivo universo dos quadrinhos.
Se você não é fã de quadrinhos, leia The Underwater Welder. Se já é, leia também. Se gosta apenas de super-heróis, leia igualmente. Deixar essa obra de fora é um erro imperdoável.
Eu cresci fazendo caretas como Marion Cobretti, fugindo de enrascadas como John Matrix e me apaixonando por Stephanie Zinone, mesmo com Emmeline Lestrange e Lisa dando trabalho. Comecei a lutar inspirado em Daniel-San e a pilotar aviões de cabeça para baixo com Maverick. Vim do futuro pelado para salvar Sarah Connor, alimento Gizmo religiosamente antes da meia-noite e, de vez em quando, tenho que visitar o Bairro Proibido para afastar demônios. Já fui policial, blade runner, assassino, mas às vezes volto às antigas atividades, mando um “yippe ki-yay m@th&rf%ck&r” e roubo a Ferrari do pai do Cameron ou o V8 Interceptor do louco do Max para dar uma volta com Jessica Rabbit.
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Críticas recentes:
– Cassidy: Omnibus – Vol.2
– Rick Grimes 2000
– Reinado do Demônio
– A Morte Invisível (Júlia Kendall #28)
– Sa Wala: Tudo por Nada
– Demolidor: Quarentena (2021-2022)
– Star Wars: Legacy Of Vader #1
– Void Rivals – Vol. 3
– TVA (2024)
Perguntas Frequentes:
1. O que torna a graphic novel The Underwater Welder uma obra diferenciada no universo dos quadrinhos?
The Underwater Welder se destaca por sua profundidade emocional e psicológica, rivalizando com a melhor literatura. A narrativa de Jeff Lemire explora temas como traumas familiares, identidade e responsabilidade pessoal, enquanto suas ilustrações em preto e branco transmitem emoções intensas de forma singular, sem depender de diálogos convencionais. Além disso, a obra possui uma linguagem visual criativa que envolve o leitor de maneira profunda.
2. Quem é o autor de The Underwater Welder e qual é sua relevância no mundo dos quadrinhos?
Jeff Lemire é o autor e ilustrador de The Underwater Welder, conhecido também por obras como Sweet Tooth. Reconhecido por seu domínio da linguagem dos quadrinhos, Lemire é considerado um talento promissor e um dos nomes importantes no cenário atual dos quadrinhos, capaz de criar narrativas emocionantes e visualmente marcantes.
3. Preciso ser fã de quadrinhos ou de super-heróis para apreciar The Underwater Welder?
Não, The Underwater Welder é recomendado para todos os leitores, independentemente de seu interesse prévio por quadrinhos ou super-heróis. A obra oferece uma experiência única que transcende o gênero, abordando questões humanas profundas e apresentando uma arte sequencial que encanta tanto novatos quanto fãs veteranos.
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