Aparências e rebeldias.
A Princesa das Ostras é uma comédia de costumes que combina caos, ironia e uma análise profunda dos jogos de poder e identidade que influenciam as relações sociais. A trama gira em torno de um magnata do comércio de ostras que tenta, de maneira tão prática quanto a compra de um barril de champanhe, arranjar um marido para sua filha. Essa premissa se desdobra em uma sátira deliciosa que transita entre o exagero caricatural e reflexões filosóficas. Desde os primeiros momentos, somos imersos num universo onde o excesso é a regra: uma mansão opulenta, uma filha que destrói o ambiente ao seu redor e um pai cercado por uma equipe de empregados para qualquer tarefa. É nesse cenário exagerado que Ernst Lubitsch encontra espaço para criticar as hierarquias da República de Weimar.
Ossi Oswalda, no papel da “princesa das ostras”, domina a narrativa com uma presença vibrante, representando uma figura feminina longe de ser passiva ou dominada pelos homens ao seu redor. Ela interpreta a filha mimada que, apesar de rodeada de luxo, deseja algo além – um desejo que seu pai tenta satisfazer de forma absurda, comprando um noivo que se apresenta como príncipe, mas cuja aparência é tão falsa quanto a ideia de uma união perfeita baseada apenas em aparências. Lubitsch brinca com essa inversão de papéis e expectativas, mostrando homens que oscilam entre o ridículo e o conquistador, enquanto Ossi conduz a história com sua personalidade forte e, ironicamente, mais prática do que qualquer outro personagem. É notável como o filme, com seu tom leve e cômico, aborda questões de poder de gênero de maneira sutil e inovadora para a época (1919), colocando a mulher no centro da ação e, ao mesmo tempo, satirizando as fragilidades masculinas por trás das máscaras de autoridade.
A sequência do foxtrote é, sem dúvida, o ponto alto do filme, um balé caótico que sintetiza sua essência: o absurdo organizado. Lubitsch transforma um salão de dança em um espetáculo frenético, onde cada personagem e figurante desempenha seu papel com uma coreografia quase mecânica. O maestro que dança enquanto rege, um homem que improvisa música com uma serra, e outro que marca o ritmo com tapas engraçados na orelha do parceiro são exemplos brilhantes do uso do humor físico para criticar a ordem social, que é tão absurda quanto as cenas exibidas. Essa sequência captura a estética da Era do Jazz, refletindo uma sociedade que buscava escapismo em meio a tempos turbulentos.
Mr. Quaker, o Rei das Ostras, com seus charutos intermináveis e apetite constante, surge como uma caricatura do capitalismo desenfreado. Ele é rodeado por um séquito de empregados negros, um detalhe que Lubitsch usa para destacar as desigualdades raciais ainda presentes. A coexistência de funcionários brancos e negros na mansão evidencia as dinâmicas de poder e raça, enquanto o roteiro também aborda a tensão entre o velho e o novo mundo – a decadente aristocracia europeia e o crescimento dos empresários americanos no cenário global. Essa camada crítica acrescenta um tom de ironia, expondo as fissuras nas estruturas sociais e a busca por validação através das aparências.
Embora a narrativa seja intensa e repleta de situações hilárias, A Princesa das Ostras apresenta certa fragilidade em seu desfecho. O encerramento da farsa carece da criatividade que permeia a maior parte do filme, resultando em um final mais convencional e menos inspirado. Ainda assim, essa limitação não diminui o impacto geral da obra, que permanece como um exemplo da habilidade de Lubitsch em equilibrar humor pastelão com uma crítica social contundente. Mesmo nos momentos mais fracos, o filme mantém uma coesão temática, reforçando a ideia de que identidades e papéis sociais são construções que podem ser facilmente subvertidas.
Com seu olhar aguçado e senso de humor único, Lubitsch captura a essência da convulsão social pós-Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que celebra a imperfeição humana em toda sua complexidade caótica. Ao nos fazer rir das pretensões e fingimentos de seus personagens, ele nos lembra da fragilidade das relações sociais em um mundo repleto de rótulos, estruturas bizarras, julgamentos e ideologias. Aqui, o riso não é apenas uma fuga, mas também uma forma de crítica.
A Princesa das Ostras (Die Austernprinzessin) – Alemanha, 1919
Direção: Ernst Lubitsch
Roteiro: Ernst Lubitsch, Hanns Kräly
Elenco: Victor Janson, Ossi Oswalda, Harry Liedtke, Julius Falkenstein, Max Kronert, Curt Bois, Hans Junkermann, Margarete Kupfer, Albert Paulig, Gerhard Ritterband
Duração: 57 minutos
Sobre o autor: Sou especialista em Cronoanálise Aplicada e Metanarrativas Interdimensionais. Formado em Jadoo de Clio (Casa Corvinal) e pós-doutor em Psicohistória Avançada (Fundação Seldon), portador do Incal e historiador-chefe em Astro City, onde mapeio civilizações críticas. Atualmente, em exílio interdimensional, desenvolvo protocolos de resistência psíquica e lidero operações linguísticas em Torchwood, decifrando sistemas complexos de comunicação audiovisual e multiliterária. Utilizo minha TARDIS como base para simulações estratégicas da Agência Alfa, convertendo crises cósmicas em modelos previsíveis sob a perspectiva Mystère. Também coordeno a transição para Edena em parceria com o Dr. Manhattan, trabalhando para alterar o eixo ontológico universal rumo a um encontro definitivo com a Presença.
Qual é o tema central do filme “A Princesa das Ostras” dirigido por Ernst Lubitsch em 1919?
O filme é uma comédia de costumes que satiriza os jogos de poder, identidade e as relações sociais da República de Weimar. Por meio de humor e ironia, aborda questões como a busca por aparências, as desigualdades sociais e de gênero, além das dinâmicas de poder entre personagens caricaturais.
Como o filme retrata o papel feminino e as relações de poder de gênero?
A personagem principal, interpretada por Ossi Oswalda, é uma jovem mulher forte e prática que desafia o papel passivo esperado para as mulheres na época. O filme satiriza as fragilidades masculinas e coloca a mulher no centro da narrativa, oferecendo uma crítica sutil e inovadora sobre poder de gênero para o período de 1919.
Quais elementos destacam a crítica social presente em “A Princesa das Ostras”?
A obra utiliza o caos cômico, o exagero caricatural e sequências como a do foxtrote para criticar hierarquias sociais, desigualdades raciais e a busca por status através das aparências. O personagem do magnata Mr. Quaker simboliza o capitalismo desenfreado, enquanto a interação entre funcionários brancos e negros expõe tensões raciais e sociais da época.
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