Os soldados perdidos
Lançado em 1979, Apocalypse Now marcou o ápice da década de ouro de Francis Ford Coppola, consolidando um padrão de excelência cinematográfica que o próprio diretor jamais repetiria plenamente, e que poucos cineastas alcançaram. A produção do filme foi turbulenta, tema de um documentário fascinante lançado em 1991, mas ainda assim, a obra chegou às telas com uma força única. No início dos anos 2000, Coppola retornou ao seu clássico para criar uma versão estendida, intitulada Apocalypse Now Redux. Considero essa iniciativa plenamente justificada, não só porque ele manteve o filme original disponível — ao contrário de outros diretores que desapareceram com suas obras —, mas também porque o processo original de edição exigiu cortar muita coisa para viabilizar o projeto, que levou dois anos na pós-produção.
Apocalypse Now Redux adiciona 49 minutos à versão original com créditos, mantendo a essência da obra, pois seria um erro desfigurar um filme dessa magnitude. Essa versão amplia e reforça os temas centrais da película, que vão além do mero discurso antibélico, revelando uma jornada simbólica que transita da civilização à barbárie. Esse aspecto foi brilhantemente analisado pelo crítico Marcelo Sobrinho em sua crítica da versão de 1979, análise que compartilho integralmente. Minhas observações aqui referem-se especificamente à versão Redux.
O trabalho de revisitar o material original não foi um simples capricho comercial, como aconteceu com a minissérie de O Poderoso Chefão e sua sequência, que Coppola usou para financiar Apocalypse Now. Trata-se de uma tarefa minuciosa, que contou com o retorno do montador Walter Murch e do diretor de fotografia Vittorio Storaro, profissionais que trabalharam na versão original. Juntos, eles criaram uma espécie de nova “bíblia” do filme, respeitando o ritmo, a gradação de cores e a identidade visual, com Storaro aplicando um processo especial da Technicolor para alcançar a versão ideal. Além disso, Coppola contratou o compositor Ed Goldfarb para criar novas trilhas sonoras e estender faixas existentes, seguindo as orientações para preservar a sonoridade original do pai do diretor, Carmine Coppola, falecido em 1991. Parte do elenco principal também retornou para gravar novos diálogos, incluindo Martin Sheen, Robert Duvall, Sam Bottoms, Albert Hall, Frederic Forrest e Aurore Clément, esta última com cenas que haviam sido cortadas da versão original.
Assim, Redux é uma versão estendida que, do ponto de vista técnico, poderia muito bem ter sido a versão original lançada nos cinemas. Contudo, isso não significa que sua narrativa tenha a mesma fluidez da edição de 1979: as cenas adicionadas podem parecer dispersivas, desvios que nem sempre se integram perfeitamente ao conjunto. Pessoalmente, não coloco Redux no mesmo patamar da versão original, mas reconheço seu valor como uma obra impressionante, que mergulha o espectador ainda mais fundo na jornada alucinante de Willard. O filme deixa claro que a visão de Coppola vai além de um filme de guerra ou um simples manifesto antibelicista; trata-se de uma reflexão inquietante sobre a natureza humana, que questiona temas que costumamos evitar ou responder superficialmente. Embora isso já estivesse implícito na edição de 1979 para quem se dispusesse a interpretá-lo com atenção, a versão Redux enfatiza o tom surrealista e crescente da trama — o que, por outro lado, pode diluir o impacto do esperado confronto entre Willard e o coronel Kurtz, interpretado por Marlon Brando.
Ao longo da versão estendida, há diversas alterações sutis e grandes inserções. Entre as mais significativas, destacam-se: (1) a conclusão da sequência do ataque ao vilarejo vietcongue pela cavalaria aérea de Kilgore; (2) o encontro com as coelhinhas da Playboy; (3) a cena da plantação francesa de borracha; e (4) as cenas adicionais de Kurtz. Essas inserções moldam o novo ritmo narrativo e motivaram ajustes em outras cenas, como o leve encurtamento do encontro entre Willard e Chef com o tigre, ou a adição de um diálogo em que Chef fala sobre sua coleção de revistas Playboy, e Clean (Laurence Fishburne) relata uma história relacionada.
A inserção da sequência na plantação francesa, por exemplo, foi uma forma de aprofundar a experiência do espectador, mostrando os horrores gerados quando as regras da civilização se desintegram, além de refletir a verdadeira jornada alucinógena dos soldados americanos durante a guerra — aspecto pouco divulgado na imprensa —, bem como a experiência do elenco e da equipe que enfrentaram o abuso de drogas nas filmagens nas Filipinas.
Sobre as cenas específicas mencionadas, a que encerra a participação de Robert Duvall retrata a frustração de Kilgore ao perder as condições para surfar após um ataque de napalm alterar o vento. Essa sequência, que adiciona um tom de humor estranho à atmosfera tensa do filme, mostra Willard e Lance aproveitando a distração para fugir, com Willard até furtando a prancha de surf do tenente-coronel. Apesar de entender o propósito de contrapor a loucura com mais loucura, considero essa parte deslocada do perfil sério e introspectivo de Willard, e, para mim, é a única cena longa da versão Redux que poderia ser removida.
Em contraste, a sequência das coelhinhas da Playboy é perturbadora e impactante. Filmada sob um céu cinzento e chuva, durante o tufão Olga nas Filipinas, mostra Willard e seu grupo chegando a um acampamento destruído onde as mulheres, claramente abusadas e drogadas, são oferecidas aos soldados em troca de combustível. Essa cena é um retrato cru e revoltante da desumanização causada pela guerra, exatamente no tom do filme.
Já a famosa cena da plantação francesa, que se estende por 24 minutos, é uma extravagância visual e temática. Coppola investiu em atores franceses, cenários luxuosos e até um jantar cenográfico com caviar e champanhe, incluindo a participação de seus filhos Romane e Gian-Carlo Coppola. Apesar de muitos críticos rejeitarem essa sequência pelo ritmo mais lento e pelo desvio narrativo, ela tem seu lugar na obra, conectando o filme à base histórica do colonialismo francês na Indochina e aproximando-o do romance Coração das Trevas, de Joseph Conrad. A cena provoca no espectador uma sensação de estranhamento e confusão, o que a torna fascinante, ainda que dilua a tensão da narrativa.
Por fim, as cenas adicionais com Marlon Brando como Kurtz ampliam sua presença no filme, mostrando mais diálogos e reflexões existenciais. Embora seja tentador assistir a mais desse ator lendário improvisando, o excesso de exposição do personagem pode prejudicar o mistério que o cerca, elemento fundamental para o impacto dramático da história. Kurtz é uma figura quase mítica, uma sombra que comanda com magnetismo e cuja aura de enigma é essencial para a narrativa.
Em resumo, Apocalypse Now Redux continua sendo Apocalypse Now em sua essência e poder. Embora por vezes se perca em sua extensão, a versão oferece mais que simples cenas cortadas, apresentando uma visão aprofundada e obsessiva de Coppola sobre sua obra-prima, que consumiu grande parte de sua vida e recursos na década de 1970. Redux é uma experiência desafiadora, que merece ser encarada para revisitar um filme extraordinário sob uma perspectiva ainda mais intensa e perturbadora.
Apocalypse Now Redux (EUA, 2001)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, John Milius (baseado na obra de Joseph Conrad)
Elenco: Martin Sheen, Robert Duvall, Frederick Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper, Harrison Ford, Marlon Brando, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Colleen Camp, Christian Marquand, Aurore Clément, Roman Coppola, R. Lee Ermey, entre outros
Duração: 202 minutos
Qual é a principal diferença entre a versão original de 1979 de Apocalypse Now e a versão Redux lançada em 2001?
A versão Redux adiciona 49 minutos de cenas inéditas à versão original, ampliando e reforçando os temas centrais do filme, especialmente o tom surrealista e a jornada simbólica da civilização à barbárie. Embora mantenha a essência da obra, a narrativa da versão Redux pode parecer menos fluida devido às cenas adicionais que nem sempre se integram perfeitamente ao conjunto.
Quais são algumas das cenas inéditas mais significativas incluídas em Apocalypse Now Redux?
Entre as cenas adicionadas destacam-se a conclusão do ataque ao vilarejo vietcongue pela cavalaria de Kilgore, o encontro com as coelhinhas da Playboy, a longa sequência da plantação francesa de borracha e cenas adicionais com o personagem Kurtz, interpretado por Marlon Brando.
Por que Francis Ford Coppola decidiu lançar a versão Redux de Apocalypse Now?
Coppola revisitou o material original para criar uma versão mais completa, justificando que a edição inicial de 1979 precisou cortar muitas cenas para viabilizar o projeto. A versão Redux, elaborada com a colaboração de profissionais da equipe original, buscou preservar o ritmo e a identidade visual do filme, oferecendo uma experiência mais profunda e intensa da obra-prima, sem se tratar de um mero capricho comercial.
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