Bruxas, fantasmas e conflitos psicológicos não resolvidos.
Ao pensar no cinema de terror brasileiro, muita gente automaticamente associa o gênero às obras do diretor José Mojica Marins e seu icônico personagem Zé do Caixão, reconhecidos por uma estética trash e um tom transgressor. Embora a importância de Mojica para o cinema nacional e para o terror seja inegável, o século XXI tem contado com o trabalho de pesquisadores como Laura Cánepa, que resgatam e valorizam outros cineastas brasileiros que também exploraram o horror, mas com propostas e estilos bastante distintos, refletindo diferentes aspectos da realidade do país. Entre esses nomes estão John Doo, Ivan Cardoso, Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khouri, responsável por dirigir o filme As Filhas do Fogo, que é o foco desta análise.
A história gira em torno de Ana (Rosina Malbouisson), que viaja até uma região serrana para visitar sua namorada Diana (Paola Morra), que mora numa casa isolada no meio de uma floresta. Elas logo conhecem Dagmar (Karin Rodrigues), a vizinha mais próxima, que afirma ser médium e tem um passado obscuro ligado a Silvia (Selma Egrei), mãe de Diana que se suicidou naquele mesmo bosque anos antes. Paralelamente, um estranho andarilho (Serafim Gonzalez) surge nas redondezas pedindo comida e bebida, enquanto acontecimentos inexplicáveis começam a tomar forma.
Dirigido e roteirizado por Walter Hugo Khouri, As Filhas do Fogo é um thriller sobrenatural que se destaca pela atmosfera cuidadosamente construída, onde os olhares e silêncios dos personagens falam mais do que as palavras ditas. Assim como em sua anterior investida no terror com O Anjo da Noite (1974), este filme de 1978 é contemplativo e repleto de simbolismos, investindo mais no abstrato do que no concreto, lembrando em certos aspectos o clima das obras de Edgar Allan Poe, adaptado à linguagem cinematográfica. Filmado na Serra Gaúcha, o longa aproveita as paisagens naturais, que são ao mesmo tempo belas e opressivas.
A direção de arte, apesar de simples, é eficiente, especialmente na ambientação dos cenários. A casa de Diana revela, de forma econômica e precisa, sua herança europeia e um certo luxo contido, enquanto a residência de Dagmar é mais modesta, com detalhes sutis que sugerem seu interesse pelo oculto e pelo sobrenatural. A trilha sonora de Rogério Duprat complementa a atmosfera do filme com discrição, nunca soando invasiva, embora também não se destaque de maneira marcante.
O roteiro aborda temas como espiritismo, parapsicologia e bruxaria de modo sutil, porém eficaz. Khouri incorpora ainda elementos fortemente influenciados pela psicanálise freudiana. Diana demonstra um grande ressentimento pelo pai ausente, a quem chama de vagabundo, e cultiva uma imagem idealizada da mãe falecida, com fortes conotações edípicas evidentes, como no fato de sua foto preferida mostrar a mãe grávida. Além disso, o filme retrata a figura masculina de forma negativa e traiçoeira: além do pai, o único outro homem é o andarilho, que não possui qualidades e paga caro por desafiar o poder feminino. Todos os personagens parecem alienados e isolados em seus próprios mundos, exceto Mariana (Maria Rosa), a empregada que viveu toda a vida na casa e acaba se envolvendo com o andarilho.
Embora As Filhas do Fogo comece com uma cena de nudez e deixe clara a homossexualidade do casal protagonista, a orientação sexual de Diana e Ana é tratada de forma lírica e natural, sem apelar para fetichismos, servindo ainda para traçar um paralelo entre Diana e sua mãe, que mantinha uma relação lésbica com a misteriosa Dagmar. Infelizmente, a qualidade da dublagem — prática comum no cinema brasileiro por muitos anos — prejudica a imersão do público, especialmente no desempenho das atrizes principais. Mesmo assim, Selma Egrei, no papel da fantasmagórica Silvia, se destaca com sua presença inquietante, olhos expressivos e sorriso enigmático. Também merece destaque Serafim Gonzalez como o irônico andarilho, que confere mistério e um toque de patetismo à sua personagem.
O único ponto que pode incomodar é o desfecho, que é um pouco excessivamente metafórico para alguns gostos. Ainda assim, As Filhas do Fogo é um filme nacional de terror que se sobressai pela atmosfera densa e bem elaborada, embora seu ritmo lento possa não agradar a todos. De qualquer forma, trata-se de uma obra intrigante que merece ser mais conhecida.
As Filhas do Fogo – Brasil, 1978
Direção e roteiro: Walter Hugo Khouri
Elenco: Paola Morra, Karin Rodrigues, Rosina Malbouisson, Maria Rosa, Serafim Gonzalez, Selma Egrei, Maria Husemann, Helmut Hosse
Duração: 98 minutos
Perguntas Frequentes:
- Qual é a temática principal do filme “As Filhas do Fogo” e como ela é abordada?
O filme aborda temas como espiritismo, parapsicologia, bruxaria e conflitos psicológicos, especialmente influenciados pela psicanálise freudiana. A narrativa investe em uma atmosfera contemplativa e simbólica, explorando relações familiares complexas, além de retratar a homossexualidade de forma lírica e natural. - Como a ambientação e a direção de arte contribuem para a atmosfera do filme?
Filmado na Serra Gaúcha, o filme utiliza as paisagens naturais para criar um clima ao mesmo tempo belo e opressivo. A direção de arte, embora simples, é eficiente na ambientação dos cenários, diferenciando as casas das personagens com detalhes que reforçam suas personalidades e interesses, especialmente em relação ao oculto e sobrenatural. - Quais são os principais destaques e possíveis pontos negativos do filme “As Filhas do Fogo”?
Destaques incluem a atuação marcante de Selma Egrei, a atmosfera densa e a abordagem sutil dos temas sobrenaturais e psicológicos. Como ponto negativo, a qualidade da dublagem prejudica a imersão, e o ritmo lento, aliado a um desfecho bastante metafórico, pode não agradar a todos os espectadores.
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