O cinema contemporâneo, por vezes, carece de vozes que, com a mesma maestria, naveguem pelas águas da sátira social e da ficção científica mais profunda. Felizmente, Bong Joon-ho emerge novamente, cinco anos após seu aclamado “Parasita”, para nos entregar “Mickey 17”, uma obra que reafirma seu lugar como um dos cineastas mais perspicazes e originais de sua geração. Sua nova empreitada, uma adaptação do romance “Mickey7” de Edward Ashton, não é apenas um retorno ao gênero de ficção científica, mas uma exploração corajosa e muitas vezes hilária sobre a identidade, a exploração e o valor de uma vida descartável.
Bong Joon-ho tem um talento singular para o cinema de gênero que transcende suas convenções, infundindo-o com uma crítica social acentuada e uma humanidade palpável, como já visto em “Expresso do Amanhã” ou “Okja”. Em “Mickey 17”, ele nos transporta para um futuro não muito distante, onde a Terra exaurida impulsiona a colonização de planetas gelados como Niflheim. É nesse cenário desolador que conhecemos Mickey Barnes, interpretado com notável versatilidade por Robert Pattinson. Mickey não é um herói convencional; ele é um “Descartável”, um operário cuja função mais perigosa é morrer. Cada vez que uma missão letal o reiventa, um novo clone, com suas memórias intactas, é reimpresso para continuar o trabalho. Essa premissa, por si só, já estabelece o palco para um espetáculo de ideias, questionando o que constitui a alma e a individualidade quando a morte se torna uma mera inconveniência logística.
A trama, de fato, ganha complexidade e um toque de comédia de humor ácido quando, após uma missão aparentemente fatal, Mickey 17 retorna para a colônia e descobre que Mickey 18 já foi gerado. A coexistência de múltiplos, como é veementemente advertido, é estritamente proibida pelo líder da colônia, Kenneth Marshall, um personagem grandioso e egocêntrico habilmente encarnado por Mark Ruffalo. A partir desse ponto, o filme se desenrola em uma espiral de intrigas e situações absurdas, onde os dois Mickeys precisam esconder sua existência um do outro e da autoridade, enquanto lutam por seu próprio lugar no universo, e até mesmo pelo amor de Nasha Barridge, vivida por Naomi Ackie.
A direção de Bong Joon-ho é um dos pilares do filme. Ele orquestra a narrativa com uma precisão cirúrgica, mesclando momentos de tensão dramática com tiradas cômicas inesperadas. A cinematografia de Darius Khondji, que já colaborou com Bong em “Okja”, contribui para criar um universo visualmente impactante, onde a desolação gélida de Niflheim é contrastada com a claustrofobia da estação espacial. A trilha sonora de Jung Jae-il, outro parceiro recorrente do diretor, sublinha as emoções e os momentos de sátira, adicionando camadas à experiência. As atuações são outro ponto alto: Robert Pattinson oferece uma performance que é um estudo de contrastes, diferenciando os Mickeys não apenas pela postura, mas por nuances psicológicas que tornam cada iteração única, mesmo sendo idênticas. Steven Yeun como Timo, o amigo de Mickey, e Toni Collette como a calculista Ylfa Marshall, também entregam atuações memoráveis que enriquecem o tecido do filme.
No coração de “Mickey 17” residem temas profundos. O filme é uma alegoria potente sobre a desumanização do trabalho e a indiferença de sistemas que valorizam a produtividade acima da vida. A ideia do “Descartável” é uma metáfora sombria para a mão de obra explorada em um mundo onde os recursos são escassos e a vida humana, aparentemente, se tornou abundante e, portanto, menos valiosa. A busca por identidade de Mickey, à medida que ele se vê substituído e confrontado com suas próprias cópias, levanta questões existenciais sobre a alma e o que nos torna quem somos. É um lembrete agridoce de que, mesmo em um futuro distante e desolador, as complexidades da condição humana persistem.
“Mickey 17” é, portanto, mais do que um filme de ficção científica; é uma experiência cinematográfica que provoca risos amargos e reflexões incisivas. Bong Joon-ho entrega um trabalho que é ao mesmo tempo acessível e instigante, solidificando sua reputação de mestre em contar histórias que reverberam muito depois que as luzes se acendem. O filme pode ser apreciado em diversas plataformas de streaming após sua janela de cinema, como HBO Max ou Prime Video, para aqueles que desejam revisitar ou explorar o universo de Bong Joon-ho e seu elenco, que pode ser pesquisado em sites como o AdoroCinema. É uma obra que, com sua mistura única de humor negro e crítica social, se mantém fiel à visão do diretor e oferece uma sátira mordaz sobre a nossa própria realidade.
Mickey 17 (Mickey 17 – Estados Unidos, Coreia do Sul, 2025)
Direção: Bong Joon-ho
Roteiro: Bong Joon-ho (baseado no romance “Mickey7” de Edward Ashton)
Elenco: Robert Pattinson, Naomi Ackie, Steven Yeun, Toni Collette, Mark Ruffalo
Duração: 137 min.
Nota: ⭐⭐⭐⭐
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