“Nise: O Coração da Loucura” se insere no seleto grupo de filmes que, ao revisitar páginas importantes da história brasileira, conseguem transcender o mero registro biográfico para oferecer uma reflexão profunda sobre a condição humana e as estruturas sociais. Dirigido por Roberto Berliner, o longa-metragem não é apenas uma homenagem à figura revolucionária da psiquiatra Nise da Silveira, mas um convite à urgência de repensar o tratamento da saúde mental, um tema que, lamentavelmente, permanece em pauta.
O filme nos transporta para o Rio de Janeiro de 1944, um período em que os hospitais psiquiátricos eram, em muitos aspectos, verdadeiros depósitos de almas, onde a “cura” era buscada através de métodos brutais como eletrochoques e lobotomia. É neste cenário desolador que a doutora Nise da Silveira, interpretada com sensibilidade e força por Glória Pires, retorna ao trabalho após um período de prisão por motivos políticos. Sua recusa em aplicar as práticas agressivas então vigentes no Centro Psiquiátrico Nacional Dom Pedro II a leva a um isolamento profissional. Ela é relegada ao abandonado Setor de Terapia Ocupacional, um local que, sob sua visão e humanidade, se transformaria no epicentro de uma revolução.
A genialidade de Berliner reside em como ele constrói a narrativa, não focando apenas na heroína, mas dando voz e visibilidade aos pacientes, os verdadeiros corações da loucura. O roteiro, assinado por Flávia Castro, Maurício Lissovsky, e o próprio Roberto Berliner, entre outros, evita a armadilha de idealizar Nise, mostrando sua resiliência diante da incompreensão e da resistência de seus colegas. A direção é cuidadosa ao retratar o ambiente hospitalar, oscilando entre a claustrofobia dos corredores e a efervescência criativa que Nise instaura em seu ateliê. A cinematografia de André Horta é fundamental para isso, utilizando luz e enquadramentos que ressaltam tanto a desumanização inicial quanto a emergência da esperança através da arte.
Glória Pires entrega uma performance magistral como Nise da Silveira. Ela não apenas encarna a figura histórica, mas transmite a paixão, a determinação e a empatia da médica. É um trabalho de sutilezas, onde um olhar ou um gesto carregam o peso de uma convicção inabalável. O elenco de apoio também brilha, especialmente os atores que interpretam os pacientes. Fabrício Boliveira, Simone Mazzer, Julio Adrião e Cláudio Jaborandy, entre outros, dão vida a personagens complexos, revelando a arte como um caminho para expressar o indizível e reencontrar a dignidade. As obras de arte criadas no filme, muitas inspiradas nas criações reais dos pacientes de Nise, são um testemunho visual do poder transformador da terapia ocupacional.
A trilha sonora, com a assinatura de Jaques Morelenbaum, é outro ponto alto, pontuando os momentos de tensão e de ternura com acordes que amplificam a emoção sem ser intrusiva. A música se torna parte da jornada dos personagens, ecoando a busca por harmonia em meio ao caos. O filme aborda com sensibilidade temas como a desmistificação da loucura, a importância do afeto e do respeito na recuperação, e a ruptura com métodos violentos. A psicologia junguiana, que tanto influenciou Nise da Silveira, é apresentada de forma acessível, mostrando como a arte pode ser uma porta para o inconsciente e para a cura.
“Nise: O Coração da Loucura” é mais do que um filme; é um documento sobre a perseverança, a compaixão e o poder da arte. Ele nos lembra que a verdadeira cura passa pelo reconhecimento da humanidade em cada indivíduo, independentemente de sua condição mental. É uma obra que merece ser vista e debatida, inspirando a continuar a luta por uma sociedade mais empática e por tratamentos de saúde mental que realmente enxerguem o ser humano em sua totalidade. Para aqueles que desejam explorar mais sobre a vida e o legado de Nise da Silveira, o filme está disponível em plataformas de streaming como Prime Video e Star Plus, convidando à reflexão sobre a história e a relevância de sua mensagem nos dias atuais.
Nise: O Coração da Loucura (Nise: O Coração da Loucura – Brasil, 2016)
Direção: Roberto Berliner
Roteiro: Flávia Castro, Maurício Lissovsky, Patrícia Andrade, Roberto Berliner, Chris Alcazar, Maria Camargo, Leonardo Rocha
Elenco: Glória Pires, Fabrício Boliveira, Simone Mazzer, Roney Villela, Julio Adrião, Cláudio Jaborandy, Flávio Bauraqui, Bernardo Marinho, Zé Carlos Machado, Roberta Rodrigues, Augusto Madeira
Duração: 108 min.
Nota: ⭐⭐⭐⭐
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